Antes de qualquer linha sobre o concerto de Rufus Wainwright no EDP Cool Jazz, uma clara manifestação de interesses: as minhas expectativas em relação a este artista são sempre mais que muitas, elevadíssimas, uma vez que quem criou discos como Poses ou essa dupla aventura Want (o primeiro, Want One, é um dos discos mais marcantes deste século, julgo eu) merecerá sempre a minha gratidão eterna. A honestidade, neste e em todos os casos possíveis, é um bem inestimável, daí a minha advertência inicial. Julgo que vou ser elogioso, como já devem ter percebido. Avancemos, então.
Nas veias de Rufus Wainwright corre talento artístico geneticamente comprovado. Uma mãe com o peso artístico de Kate McGarrigle, e um pai com o estatuto invejável de Loudon Wainwright III, só poderia produzir bons resultados. No entanto, o rapaz andou meio perdido durante algum tempo, reencontrando-se finalmente na obra-prima sublinhada nas linhas anteriores. Desde Want One Rufus está mais equilibrado emocionalmente (e as fragilidades do coração, como se sabe, foram dando cabo dele em tempos passados), está mais seguro e mais capaz de se aventurar noutros territórios bastante distantes daqueles a que nos habituou nos seus primeiros dois trabalhos. Lembremos que Rufus até uma ópera já tem no seu currículo!
Tudo isto serve para melhor enquadrar o que a noite nos reservou (e julgo que o plural aqui empregue está longe de ser abusivo). O seu mais recente trabalho (Out of the Game, 2012) não esteve na base do concerto de ontem, mas ouvir canções como "Rashida", "Montauk", ou "Out of the Game" tocadas ao vivo e espalhadas por momentos distantes uns dos outros ao longo de mais de hora e meia de show, é coisa que consola a alma de qualquer um, como foi o meu caso. A grande novidade para mim, que já tinha assistido a vários concertos do canadiano, teve a ver com o facto de não vir acompanhado da habitual banda. Esteve só em palco, e na noite fresca que se foi levantando, ouvir apenas o piano, a guitarra e o agasalho da voz de Rufus foi extraordinário e até comovente, em certos momentos. Como seria de prever, Rufus andou mais para trás no tempo e brindou-nos com temas dos seus primeiros trabalhos (sobretudo Poses), e com isso ganhou facilmente o público e a noite ficou mais quente. Abriu com "Grey Gardens" e ao cantar o verso Tadzio, Tadzio fez-me recordar o extraordinário romance Morte em Veneza, de Thomas Mann (sugiro-vos, já agora, essa leitura, e terão uma agradável surpresa a unir o texto literário do realista alemão, com a canção de Rufus), e foi avançando até chegar a "Rebel Prince", "The Art Teacher", e depois falou do grande Jeff Buckley, que conheceu pouco tempo antes da trágica morte desse rapaz prodígio, para instantes depois cantar "Hallelujah", que é, simultaneamente e para mim, uma canção e um hino. Mas houve muito mais: "Want" quase me levou ao tapete, tal o impacto que essa canção teima em me provocar . Já um pouco mais refeito, aguentei novos e prazerosos embates, como "Gay Messiah" (que numa introdução hilariante dedicou ao novo Papa), "Going To a Town" e "Cigarettes and Chocolate Milk", que aos primeiros acordes de piano colocou o público em delírio. Foi o fim, antes do encore... Rufus informou que tinha de se levantar às 5 da manhã, e que lamentava não ter mais tempo para gozar a noite. Eu também lamentei.
A última canção que se ouviu foi "Poses", que tenho para mim ser das canções mais belas do seu vasto repertório autoral. Atrevo-me a mais, até: "Poses" é verdadeiramente uma canção genial, digna de pertencer (como pertencerá, estou certo) a um restrito leque de canções intemporais da primeira década deste nosso tempo. Daí a pergunta: alguém com ouvidos atentos e antenados tem dúvidas de que Rufus Wainwright é um dos mais completos compositores e intérpretes da sua geração? Eu sei a resposta, e não me desvio dela. Como percebem agora, fiz bem em avisar, logo de início, que não me pouparia a elogios. Nada como sabermos ao que vamos, não é verdade?
* texto escrito para publicação no site Altamont.
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