quinta-feira, 24 de outubro de 2013

A noite de Thais Gulin


  


Ontem foi a segunda vez que vi ao vivo um show de Thais Gulin. A primeira havia sido em maio, no Espaço Brasil, na Semana Jóias da MPB, em que a cantora do Paraná dividiu a noite com a carioca Nina Becker. Em ambas as ocasiões, a mesma ideia permaneceu: Thais é uma artista em fomação. Para mim, que ganho a vida a dar aulas e a formar professores, a expressão em itálico é-me particularmente querida, porque nisso se vê claramente, e muitas vezes em embrião, algo que sabemos ser de enorme qualidade. Esse é, uma vez mais, o caso. Thais Gulin tem apenas dois discos de originais, e talvez essa seja a razão de nos ter dado, ontem, um show tão curto. Em pouco mais de 50 minutos, sem contar com os dois breves encores, Thais Gulin mostrou-se ao pouco público da Sala TMN (que a recebeu muito calorosamente, note-se) revelando presença personalizada, profissionalismo, simpatia e agrado em partilhar connosco a noite chuvosa lá de fora. Mas também revelou alguma timidez, algum nervosismo, que o seu ar de menina nem sequer tentou disfarçar. Antes assim. Foi mais sincero, o show. E foi bom, sem margem para dúvidas. Antes ainda do concerto começar, um dos momentos altos da noite aconteceu. Poucos deram por ele, tão distraído estava o público em conversas de copo na mão. Acompanhado por alguém que desconheço, o enorme Milton Nascimento entrou na sala, tranquilamente, e sem que qualquer aparato tivesse sido gerado. Parecia um comum mortal, e não a mega estrela que sabemos ser. Ver um ídolo de sempre passar a poucos metros de distância, mesmo que já tenha tido a oportunidade de falar com ele e de o cumprimentar efusivamente, mexe com qualquer pessoa, daí o registo desse acontecimento nestas linhas. Parece estar em boa forma, o bom e velho Milton, que se encontra em Lisboa para apresentar o show dos 50 anos de carreira, no Coliseu dos Recreios, no próximo sábado. Lá estarei, assim o desejo se concretize, para neste mesmo sítio vos dar conta de tudo. Mas vamos ao concerto da noite, então?
O concerto começou forte, com duas ou três canções de rajada, todas elas dignas de registo. "Ali Sim, Alice", canção que Tom Zé fez para Gulin (com direito a uma pequena história introdutória e explicativa da forma como a canção surgiu), revelou-se imensa pelos ares da sala, porque na verdade ela tem o toque de génio que o cantor e compositor de Irará costuma dar aos seus trabalhos. A música é divinal, e a letra um primor. Os versos cantados levam-nos de imediato para o universo aliciano de Lewis Carroll. "Água", do também grande Kassin, entrou de rompante, no seu ritmo (quase) frenético, e o público acompanhou, cantando o "pá, pá, pá, pá" do refrão. A versão que Gulin canta não tem a força da versão original (presente no disco Futurismo, de Kassin + 2), mas é muito equivalente à boa versão que o mestre Caetano levou ao palco no seu show Zii e Zie. Seguiu-se a velhinha "Little Boxes", de Malvina Reynolds, que o público português talvez conheça, uma vez que foi usada como tema de abertura da maravilhosa série televisiva Weeds, portagonizada pela ainda mais maravilhosa Mary-Louise Parker. A língua inglesa não desapareceu, e o que se ouviu a seguir terá deixado algo espantado o público menos atento, uma vez que Thais Gulin cantou "Alabama Song (Whisky Bar)", dos The Doors. A dupla Roberto e Erasmo Carlos também estiveram presentes com "Cama e Mesa", numa versão mais roqueira do que a original, e a interação com o público não se fez esperar. A plateia sabia a canção de cor, e cantou-a com Gulin, que na sua delicada e entusiasmante timidez, se mostrou feliz pela comunhão das vozes do público com a sua. "Hotel das Estrelas", de Jards Macalé e Duda Machado, foi outro grande momento do show, assim como a saudosa "Augusta, Angélica e Consolação", de Tom Zé. Era desta forma que terminava o show que Thais Gulin nos tinha reservado. Muitas palmas, assobios, pés no chão, e Thais voltava sozinha para interpretar, à capela, o tema título do seu segundo disco. Não foi brilhante, diga-se. Mas seguiu-se a assombrosa "Cinema Americano" (uma das duas canções que repetiu, embora com novidades pelo meio, através de citações várias), canção de Rodrigo Bittencourt presente no muito bom ôÕÔôôÔôÔ, de 2011. Um segundo e também breve encore fechou definitivamente o concerto. Lá fora ainda chovia. Para condizer com a noite escura, na Sala TMN já nenhuma estrela brilhava. 


* texto de reportagem para o site Altamont, que poderá ser visto (com mais fotos) ainda hoje, aqui.

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