quinta-feira, 26 de março de 2009

A Cidade das Palavras

I - A minha cidade já não existe. Mudou de nome. Tinha nome de pessoa e agora tem apenas nome de cidade. dela recordo o que vivi até a ter deixado a milhares de quilómetros de distância. Morreu a cidade em que nasci e nasceu outra igualmente bela, porque igual. Apenas mudou o nome, apenas mudaram as palavras.

II - A minha cidade já não existe. A luz, o sol dessa mesma luz, já não o vejo. Mas ele continua a existir deitado nas águas índicas das praias onde fui quando criança. Não lhe sinto o calor, não sinto o caldo da água onde chapinhavam os meus braços inocentes em brincadeiras de pingos salgados.

III - A minha cidade já não existe. Em memória dela tenho páginas e páginas escritas que falam de dias amplos e de gritos de aves, de micaias a florescer e de nuvens altas e areias cintilantes. Tenho palavras prontas que dão saltos de meninos pelas ruas que hoje são outras, sendo exactamente as mesmas.

IV - A minha cidade já não existe. Só os livros falam dela. Só as fotografias dos álbuns de família conseguem fazê-la viver um pouco. Ninguém vê, ninguém sente, mas nelas há uma vida que acontece para além do tempo, quando as seguro, quando me demoro ao ver as ruas, os carros nas ruas, as pessoas nas ruas preguiçosamente emolduradas nessa memória fixada no papel.

V - A minha cidade já não existe. Houve tempos em que existiu, e foi bonita a minha cidade. Ontem julguei tê-la visto enquanto passavam as horas do dia que nascia. Era a mesma, exactamente a mesma cidade que quase não conheci. Parecia viva, e ouvia-lhe os sons, as conversas vagarosas das gentes e os sorrisos sem tempo que mostravam. Dei-lhe então um novo e derradeiro nome: a cidade das palavras.

* este texto foi escrito há já muitos anos, para uma primeira edição de um jornal lisboeta, a convite do meu amigo Artur Carvalho. Confesso-te duas coisas, Artur: julgava este texto perdido para sempre, e já não me recordo do título do jornal...

** brinquei e passeei muitas vezes no espaço que a imagem acima mostra. A minha casa distava poucos metros desse local. Fui baptizado na Catedral que se vê na imagem. A minha cidade é, desde há muito, uma imagem impressa a cores no papel da minha memória. Chamava-se Lourenço Marques, e era lindíssima.

5 comentários:

Artur Guilherme Carvalho disse...

Era "A Gazeta de Lisboa" e ainda bem que recuperaste este belíssimo texto porque na fonte já não o consegui recuperar. Um abraço, amigo.

A Coração disse...

Belíssimo texto.

Yanneck disse...

Sempre te ouvi namorar Lourenço Marques, numa saudade tão desmedida como despedida.
Não sei se lá voltarias, não porque não quisesses, mas porque lá te deixaste em pequenos pedaços, espalhados pela cidade que já não existe. E todos os dias, recebes deles postais de saudade, daqueles antigos, com selo e tudo.

Um abraço

Carlos Lopes disse...

Yanneck: o teu comentário é melhor do que o meu texto...

Abraço.

Vítor disse...

Quando um dia visitar a cidade que existe no sítio da que já não existe, encontrar-te-ei por lá e, nesse momento, dar-lhe-emos vida outra vez.

Abraço