quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Poema

Não importa a folha
o papel de compra
o livro aberto
na página incerta

Não importa a letra
seja concreta
ou abstrata
importa é bater
à porta mesmo sabendo
que está sempre
aberta

Só importa a hora
de ficar alerta

Há uma coisa certa
uma só coisa certa

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Gilengendraemgilrouxinol



Estar na presença de duas lendas vivas da música, em pouco mais de uma semana, é algo que não acontece com muita frequência. No final do mês de outubro, estive no concerto de Wayne Shorter, e ontem, exatamente no mesmo local desse evento, assisti ao show de Gilberto Gil, nome incontornável do tropicalismo brasileiro e um dos nomes maiores da música popular brasileira de todos os tempos. A afeição que sinto por Gilberto Gil vem do tempo da minha juventude, e desde essa distante data que nunca o perdi de vista nem de ouvido. Se é certo que nem sempre a sua carreira me entusiasmou demasiadamente (em particular alguns períodos de flirt com o reggae e com o baião), também vos digo que noutras alturas Gilberto Gil ombreou lado a lado, na minha cabeça, com os deuses Caetano e Milton. Os discos homónimos que lançou nos finais dos anos 60 e início dos 70, bem como Refavela,RefazendaRealceLuarUm Banda UmExtraRaça Humana ou Dia Dorim Noite Neon são discos que fazem parte da minha vida e que me trazem memórias importantes e imorredouras. Ou ainda aqueles dois soberbos registos ao vivo, os enormes Refestança (com Rita Lee) e Gilberto Gil ao Vivo em Montreux, por exemplo, também fazem parte desse generoso lote de álbuns que guardo no coração. No entanto, alguns trabalhos posteriores aos acima mencionados, pouca qualidade trouxeram aos meus ouvidos. O Eterno Deus Mu DançaParabolicamaráQuanta ou Banda Larga Cordel, entre outros, afastaram-me um pouco do bom baiano de Salvador. Precisava de me reconciliar com Gil. Precisava de fazer as pazes com o passado que nos foi comum, digamos assim. Depois de o ter visto ao vivo várias vezes, uma das quais partilhando o palco com Caetano Veloso, tive de novo a fortuna de assistir ao seu mais recente espetáculo europeu. Acústico, a solo, com apenas dois violões em palco, este Gilberto Gil vintage mostrou um homem no topo da sua forma, contido pelo formato e pelo conceito do show, mas de asas fortes e abertas. Foi capaz de planar até ao longínquo passado do tropicalismo, sobrevoando muitos outros momentos da sua recheada carreira.
gilengendra – Gil imaginou um espetáculo de homenagem a muitos dos grandes nomes da canção brasileira, presenteando-nos com hora e meia de um show muito equilibrado e prazeroso. Começou de mansinho e foi ganhando força até explodir. Gil resolveu em boa hora (juntamente com Flora, sua mulher) apresentar-se com os melhores, tirando deles muito do legado que deixaram, ao mesmo tempo que se vestiu nessas roupagens terceiras. E que bem coube nesse fato de boas linhagens canoras. Ficou elegante, o show. Ficou para lá disso, para meu supremo encantamento. Gil resolveu fazer um concerto encantador, e deu-se bem com o conceito de partilhar com os melhores algumas das suas melhores canções. gilengendra sempre tudo muito bem.
gilengendraemgil – Gil tem muitos anos de carreira, muitos anos de palco e de discos, milhares de quilómetros de canções solares, outras um pouco mais inquietas e inquietantes. Canções suas que tomamos como nossas. Canções que nos adotaram no preciso instante em que também as adotámos. Foram muitas as que passaram ontem pela sala mais nobre do Centro Cultural de Belém. «Rio, Eu Te Amo», «Aquele Abraço», «Flora», «Expresso 2222», «Andar com Fé», «Toda Menina Baiana» e «Esotérico» são alguns dos melhores exemplos. Cantou-as com a garra de sempre, com insuspeita entrega máxima, em máxima rotação. Gilberto Gil tem o ritmo à flor da pele, todo ele é música, todo ele é arte. Cantar a sua própria arte na sua própria voz, nos trejeitos de sempre (como acontece no final das canções, depois do último acorde do violão, levantando o braço direito à altura da cabeça, que se inclina ligeiramente tombada, num gesto imortalizado na imagem da capa do disco Gilberto Gil em Concerto, para o projeto “Luz do Solo”, de 1985), nas brincadeiras com o público, tão do seu costume desde o começo dos seus tempos de artista. gilengendraemgil como ninguém.
gilengendraemgilrouxinol – Gil foi porta voz do canto de outros, rouxinol cantante em outras línguas, outras linguagens artísticas, apropriando-se delas com a mestria costumeira. Cantou canções marcantes das carreiras de Orlando Silva, Tom Jobim, Bob Marley, Dorival Caymmi, Ary Barroso, Roque Carvalho e Caetano Veloso. Esteve na companhia dos eleitos, evocando-os um por um. Muitas palavras sobre o Rio, outras sobre a Bahia, sobre Lisboa, Roma, Paris. Emocionou-se, no começo do encore, ao dizer que amanhã (hoje) voltaria para casa. Mas antes, em pleno show e a plenos pulmões, mostrou-nos as suas versões de «Aos Pés da Cruz», «No Woman No Cry / Não Chore Mais», «Saudade da Bahia», «É Luxo Só», «Nossa Gente», «Maracatu Atômico» ou «Desde Que o Samba é Samba». A partilha deu-se de forma crescente, e os pedidos de «Canta, Lisboa» foram sendo mais presentes e mais correspondidos. Houve momentos em que toda a sala cantava, maravilhada. Foi bonito e comovente. Gil pode voltar para casa em paz. Gil pode voltar para casa com a certeza de que ficou também um pouco dele por cá, em todos nós. gilengendraemgilrouxinol de maneira absolutamente certeira.
Findo o concerto, a verdade dos versos da canção «Palco», que dizem «Eu como devoto trago um cesto de alegrias de quintal», foi ecoando na minha cabeça durante horas a fio. Levei para casa essecesto repleto dessas mesmas alegrias. Daí que o melhor da noite tenha sido a minha total reconciliação com Gil. Precisava tanto disso que nem sequer imaginam quanto. É que ambos temos uma bonita história em comum que de nenhum jeito pode ser minimamente beliscada. Saravá, mestre Gil! Mando-te calorosamente aquele abraço apertado, como há muito tempo não dávamos.
Nota de rodapé: apropriei-me foneticamente dos versos de «Gilberto Misterioso», canção de Caetano Veloso e Souzândrade presente no disco Araça Azul, para que pudessem servir de mote à estrutura deste texto. Originalmente, os versos dessa canção são apenas dois, e aparecem redigidos assim: «Gil em Gendra / Em Gil Rouxinol».
Alinhamento:
  • Palco
  • Aos Pés da Cruz [com citação final de Samba do Avião]
  • Desafinado
  • Rio, Eu Te Amo
  • Aquele Abraço
  • Tres Palabras
  • Flora
  • No Woman No Cry / Não Chore Mais
  • Three Little Birds
  • Saudade Da Bahia
  • Desde Que O Samba É Samba
  • É Luxo Só
  • Eu Só Quero Um Xodó
  • Nossa Gente
  • Maracatu Atômico
  • Expresso 2222
  • Andar Com Fé
  • Toda Menina Baiana
Primeiro e único encore:
  • Esotérico
  • O Pato
  • Esperando Na Janela
* reportagem de minha autoria feita para o Altamont
** sai aqui com algum atraso, mas justificadamente (ainda estou em paz com Gil)

sábado, 1 de novembro de 2014

Wayne Shorter no CCB


Antes: saber que vou ouvir e ver (a ordem verbal é a mais correta, mas a inversa também poderia ser absolutamente verdadeira) uma lenda viva da música deste e do século anterior é algo que me deixa nervoso e inquieto. Expectante, sobretudo. Não consigo parar de pensar nesse facto e tento antecipar o primeiro impacto, o primeiro momento, o instante em que na minha cabeça não existirá mais nada a não ser o concerto de Wayne Shorter na principal sala do Centro Cultural de Belém. Até lá sofro e comovo-me, ao mesmo tempo que recordo discos e temas que fizeram de Shorter o monstro do jazz que todos conhecemos. São muitos, mas um há em particular, aquele que me colocou pela primeira vez perante o músico, que até à data apenas conhecia de nome: Native Dancer, disco de 1974. Depois desse álbum (que tem «Ponta de Areia», por exemplo, e que amo até aos dias de hoje) fui desbravando caminho e conhecendo os inevitáveis Juju e Speak No Evil, e ainda The Soothsayer ou Super Nova, apenas para mencionar alguns dos trabalhos gravados em nome próprio. A estes fui adicionando outros, em que a sua participação como músico / compositor foi absolutamente extraordinária e marcante: E.S.P, In A Silent Way, Nefertiti eBitches Brew, (com Miles Davis), I Sing The Body Electric (Weather Report), Free Form(Donald Bird) e 1+1 (com Herbie Hancock). Estes são apenas os que mais me marcaram, e, pelo que se vê na amostra apresentada, como poderei eu estar noutro estado que não o da inquietação? Tenho contado os dias e as horas. Vai ser hoje, e com Wayne Shorter estarão em palco outras feras do jazz. A saber: Danilo Perez (piano), John Patitucci (contrabaixo) e Brian Blade (bateria). Será na companhia destes senhores que vou estar mais logo, daqui a poucas horas, no CCB, e quase tremo ao escrever estas linhas.

Durante: As conversas começam. Os instrumentos trocam entre si os primeiros recados, as primeiras ideias, esboçam os primeiros conceitos. Dir-se-á que assisto a monólogos em franca conversa. Levado por ritmos e melodias improváveis, cedo percebo que estarei longos minutos ocupado a perceber tudo o que vai acontecendo à minha frente. Estou pertíssimo do palco, e tenho a sensação de que me apercebo das súbitas alterações de direção musical antes mesmo destas acontecerem. A música é também uma evidência física, e a proximidade com ela não é um facto que se deva desprezar neste tipo de performance. Há momentos de acalmia e outros de intensa tempestade. Os fraseados de Wayne Shorter começam a ganhar espaço entre o piano, o contrabaixo e a bateria efervescente de Brian Blade (sempre muito intenso nas batidas, embora me pareça, por vezes, que abusa um pouco dos mesmos recursos rítmicos). Tudo vai crescendo, ganhando corpo. Há revoluções que ocorrem em poucos segundos, êxtases que provocam alguns «bravo!» vindos da plateia. Passam 55 minutos como se tivessem apenas passado meia dúzia. O primeiro mar de aplausos invade a sala e estatela-se de encontro à boca do palco. Os músicos sorriem, agradecidos. Segue-se novo tema, curto desta vez, preciso, com uma contenção maior, menos free do que o longo momento anterior. Nova onda de aplausos. A maré de contentamento está alta. O quarteto junta-se, despede-se com a vénia costumeira, e é o fim do concerto, julgo eu.  Afinal, minutos depois, percebo que é mentira. Eles regressam, para grande alívio de todos. Tocam mais um tema curto, certeiro, na mouche. Fogem de novo para os bastidores, e de novo regressam para a última composição da noite. É o que adivinha. Nova onda de delírio percorre a sala, e o fim acontece mesmo alguns momentos depois. Ainda regressam mais uma vez, apenas para nova colheita de aplausos, que nunca cessaram até ao acender das luzes de palco. Wayne Shorter continua grande, mas a idade pesa. São mais de 80 anos de vida. No entanto, se fechar os olhos – e fechei-os inúmeras vezes – está novo e tão inovador como sempre foi. Em muitos momentos do concerto fui vivendo peripécias interiores. Fui para onde a música me levou, e levou-me a lugares incertos e improváveis. Pensei em O Som e a Fúria, de Faulkner, nos instantes de maior exaltação composicional. Pensei no célebre 18.º capítulo do Ulisses, de James Joyce, nos momentos onde os fraseados dos instrumentos eram avassaladores e nada normativos. Pensei ainda noutras coisas que não refiro aqui por pudor e por decência. Os sons comandaram-me a cabeça. Eu apenas obedeci às suas ordens fantasiosas.

Depois: acabou o concerto, e a partir de agora só a memória desse momento existirá. Os ecos do saxofonista soprano irão permanecer comigo durante dias e dias. Vou com a sensação privilegiada de ter assistido a um grande concerto, e com a absoluta certeza da existência de um Olimpo que, de quando em vez, desce à Terra e abre a porta da sua casa e dos seus sons aos ouvidos humildes e humanos. Sei que ganhei muita coisa e que perdi outra tanta. É muita oferta para uma cabeça, dois ouvidos e um só coração. Custa muito a constatação do fim, mas não custa rigorosamente nada sonhar que tudo ainda continua e continuará. Faço-me ao caminho na longa avenida de Belém. Tento assobiar a melodia impossível que trago dentro de mim. Vou sorrindo, e só eu sei porquê, andando ao encontro da felicidade que deixei para trás.

* texto de minha autoria que pode também ser encontrado no site Altamont - Music For The Music Generation