terça-feira, 24 de novembro de 2015

Ninguém escreve como tu

Andei a vasculhar pens antigas e deparei com alguns textos meus que escrevi para jornais e revistas. Recuperei este, que deve ter sido escrito há uns 16 ou 17 anos, era a minha filha muito pequena. Tudo a propósito de uma extraordinária entrevista que António Lobo Antunes deu à Pública (revista do jornal Público), se não me engano, e que tinha como título Ninguém Escreve Como Eu. Deixo-o aqui, para "memória futura".

...

Ninguém escreve como tu. Ninguém. E não era preciso dizê-lo. A verdade, por muito que custe a muitos, é que ninguém escreve como tu. Nem mesmo tentando, como agora, na febre da escrita às três da manhã, onde o silêncio é tanto que paro e escuto a memória já um pouco adormecida de uma voz que diz
- «Você é um anarquista, um marginal, você pactua com o leste, você aprova a entrega do Ultramar aos pretos»
e olho para o teto para aliviar os olhos no branco da tinta do teto sem as linhas do papel por cima do branco imaculado das folhas, e de súbito a voz da minha filha que me chama
- «você aprova a entrega do Ultramar aos pretos»
do fundo do seu quarto e sei que deve estar de joelhos por cima do edredon da Disney com os braços abertos para o colo que só os pais sabem dar
- papá, papá
largo a caneta e o caderno, tiro os olhos do branco do tecto e reparo numa ponta de humidade ( porque o inverno vai longo e húmido, pouco chuvoso é certo, mas que está a ser húmido, está )
- papá, papá
e os chinelos que não estão no sítio para os calçar e a voz de novo a trovejar
- «você é um anarquista, um marginal»
os braços da minha filha esticados para o conforto dos meus, e ao contornar a cama tropeço nos chinelos fora do sítio habitual e digo
- já vou pipoquinha, já vou
sempre com a ideia da voz distante que a razão não apagou ainda, procuro a luz do quarto para não tropeçar em mais nada, para não assustar a minha filha já de si assustada por sonhos que todas as crianças teimam em ter a meio da noite, a meio dos sonhos dos adultos, tomo-a nos braços e faço o percurso inverso até ao ponto de partida, esquivando-me das armadilhas dos chinelos e das vozes
- «você aprova a entrega do Ultramar aos pretos»
quando são já quase quatro horas da manhã e a vontade inicial destas linhas era apenas dizer que ninguém escreve como tu, António, por muito que custe a muitos, ninguém escreve como tu.
(Os excertos entre aspas foram retirados da sua primeira obra publicada, Memórias de Elefante. )

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