quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Poema

Muito do que faço
ainda é pouco:
o tempo
limitado
em que medito
e os versos
onde inscrevo
o infinito

Despertar


Por vezes acordava antes do sol nascer. Quando assim era não conseguia perceber bem se ainda dormia ou se despertava de um sono de horas entre lençóis. Mas naquele dia o sol acordara primeiro e lentamente foi pintando a cidade com a luz das suas cores. Apeteceu-lhe abrir a janela. Levantou-se... Respirou todos os momentos que a imagem lhe oferecia e decidiu nesse instante fazer o que, no fundo, sempre quisera: ser também ele o sol da vida de alguém.


* esta imagem foi retirada do blog http://bocadosdetudo.blogspot.com/

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Feito de nada


É disto que se trata
da essência altiva
e baça
de sermos assim:
imensa alma retalhada
erguida em voz
como gente
feita com restos de nada
e sobras
de outros
em mim

Escrever


O silêncio cerzido
nos minutos
nos instantes
em momentos definidos
e hesitantes

A punção na folha
a germinar
a dor de ser assim

E plantar
sem ter noção
da imensidão
desse jardim

Trees Outside The Academy


Ontem estive até às tantas a corrigir testes. Apenas eu na sala, enunciados e folhas escritas onde me perder durante horas, e o som de Trees Outside The Academy no fundo dos ouvidos. Foi o que me salvou de mais uma noite chata e sonolenta.
O disco é recente, deste ano. São doze temas, se contarmos com a faixa final ("Thurston @ 13"), onde apenas ouvimos a voz de Moore a brincar com latas de spray, moedas que vai deixando cair num tampo de madeira, tudo registado num gravador roufenho e antigo. O resto é uma maravilha: guitarras a trepar por mim acima, comedidamente ruidosas, mas de temperos melódicos, vozes que nos dizem o que lhes vai na alma para consolo da minha. Podia, de certa forma, ser mais um disco dos Sonic Youth. Mas não é. É apenas Thurston Moore a brilhar sozinho no fundo dos meus ouvidos, numa noite nada chata, numa sala repleta de folhas de teste e enunciados sonolentos estendidos sobre a mesa.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Poema


Volto às palavras
para dizer-te
o impossível

O que sobra delas
o seu excesso
e do que nelas
nem me reconheço

Volto às palavras
como quem brinca
e tira do bolso
a vida
e o seu avesso

domingo, 28 de outubro de 2007

Poema


Dizias que voavas
por sobre as margens
da vida
que sabias os caminhos
das verdades
percorridas
e que desejavas ter
(se o futuro te desse asas)
os corpos das meninas
que abraçavas

Dizias que voavas
sem saberes
que o sonho de voares
está nas palavras

sábado, 27 de outubro de 2007

O passado é um monte de pó impossível de aspirar


"O passado é um monte de pó impossível de aspirar." Era assim que gostava de se referir ao seu passado.
A memória desse tempo tinha-a guardada em velhas imagens de papel, em frases e momentos que distavam de si apenas um segundo, se assim o entendesse. Tinha-o por inteiro na cabeça. Bastava um cheiro, um gesto, um qualquer sinal e a memória logo vinha, fresca, transparente, pronta. Os amigos lado-a-lado, abraçados no longo fio do tempo, sempre dispostos aos jogos da lembrança. Tempos antigos, cobertos pela poeira do tempo onde num repente acontecia o ruído de um pião, uma algazarra de risos, um jogo que se perdeu num penalti por marcar.


* esta imagem foi retirada do blog http://bocadosdetudo.blogspot.com/

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Poema

Prisioneiro dos dias
das horas que marcam
dos tectos das casas
das manhãs macias

Prisioneiro sempre
das artérias nuas
nas noites suadas
das ruas vazias

Prisioneiro em vão
das coisas que existem
mas livre nos versos
da minha prisão

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Sono eterno


Esta imagem de Marilyn Monroe, tirada num momento da rodagem de The Misfits (1961), é surpreendente. Primeiro, porque mesmo que a fotografada não fosse quem todos sabemos, continuaria a poder ser admirada em toda a extensão da sua beleza. Segundo, porque o despojamento do corpo feminino demonstra uma certa essência de liberdade total, arrebatadora, prazerosa. Depois, porque a nostalgia dos tons sépia resulta magnificamente, fazendo-nos crer que a beleza feminina não necessita das cores do dia-a-dia para se tornar eterna. Mas também pelo que não mostra, pelo que não expõe, pelo que naturalmente esconde, pelo erotismo sublinhado nas ondas do lençol vizinho ao corpo, como se de uma outra pele se tratasse. O pormenor do braço estendido em abandono, a mão quase sonâmbula em delicada posição de descanso, a luz silenciosa que invade o momento...
Se o sono eterno fosse assim, rigorosamente assim, talvez a vida valesse ainda mais a pena.


* esta imagem foi retirada do site http://sound--vision.blogspot.com/

Poema

A vida
em meia dúzia de versos

Hoje sei que há versos
que não cabem
numa vida

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Syd Matters


Syd Matters é uma descoberta relativamente recente. Há pouco mais de um ano dei com uma faixa deste autor numa compilação de Modern Folk. Fiquei impressionado, confesso. Rapidamente procurei os seus discos e em boa hora o fiz. O primeiro a chegar-me às mãos foi A Whisper and a Sigh. Para disco de início de carreira, não se podia desejar mais: é de uma maturidade impressionante, melódico, cheio, empolgante. Em 2005 saiu o segundo, este que aqui se ilustra: Someday We Will Foresee Obstacles. Se o primeiro impressionou, o segundo levou tudo um pouco mais além. É perfeito. Tão outonal que o tenho ouvido nestes dias que vão pedindo um diferente agasalho auditivo... Tem To All Of You, hino às raparigas norte-americanas e ao fascínio dos seus gestos, hino ao brilho moderno de certas deusas do cinema que vivem para além da morte, hino à plasticidade formatada dos seus corpos. É simplesmente brilhante. Um brilho que ilumina por dentro, que acende em nós uma chama difícil de apagar.


* a imagem que acompanha este texto é a capa da versão especial deste disco que agrupa os dois primeiros trabalhos de Syd Matters.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Timidamente

Pudesse eu
criar raízes ao sol
flor crescente
em teu redor

Passo a passo
ser o perfume
que se solta:
riso em flor

Preso ao corpo
a desfazer os laços
de outro tempo
ainda maior

domingo, 21 de outubro de 2007

Existência


Saber de cor
o correr dos dias
o passar dos tempos
as folhas do chão
em bailados
de vento

E saber ainda
que nada se sabe
do passar dos dias
do fluir dos tempos
das folhas do chão
de qualquer momento

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Caetano Banhart


Um estrela, outro fã. Um génio, outro quase. Um Deus, outro a caminho.


"... E não hááááááááááá outros."*


* apropriação "fonética" de Uns, original de Caetano Veloso.

** imagem retirada do blog http://hugthedj.blogspot.com/

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

O prazer de oferecer


Uma colega e amiga deu-me ontem alguns livros que há muito tinha lá por casa. O facto de estarem autografados pelo autor fez-me ponderar se devia ou não aceitar esse pequeno tesouro. Aceitei, porque era essa a sua vontade. Fiquei imensamente feliz e dificilmente poderei retribuir esse gesto tão gentil. Algumas das obras oferecidas são de um dos maiores (e mais esquecidos) escritores brasileiros de todos os tempos. Os romances são belíssimos, as capas magníficas e o tempo parece ter-lhes dado o merecimento que os homens lhe vão, hoje em dia, negando. José Mauro de Vasconcelos sempre foi uma referência para mim. Pela maneira de mostrar os sentimentos, pela lucidez das coisas ditas pelo coração e pela generosidade humana com que vivia a vida.
Exactamente como a minha amiga Isabel.

Poema


Madrugada
a insónia dos dias
tomou conta
desta noite

É hora de acordar
as sombras
do silêncio
estabelecido

Na rua
passeia a alma
do meu corpo
adormecido

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Limpar a vista


Gosto de limpar a vista. De olhar para imagens, pessoas, objectos e esperar que deles venha o sinal desejado. De saber que as coisas simples são infinitamente mais complicadas do que julgamos num primeiro momento. Gosto de olhar e perceber que a harmonia pode ter subtilezas de dança, de caos, de afectos. Quando isso acontece sinto que tudo vale muito mais a pena.
Tudo isto a propósito deste quadro de Miró. É um trabalho maravilhoso, não só pelo que mostra, como pelo que esconde. Ou seja, pelo que demora mais algum tempo a mostrar. Inevitavelmente, o momento mágico acontece, e percebemos que o que esconde não está nele, mas dentro de nós. E por isso, gosto de limpar a vista.


* La Leçon de Ski, Juan Miró

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Teimosia

As palavras perdidas
nos recantos da casa
por arrumar

A janela aberta
por onde voam
folhas brancas
como pássaros da alma

O vento
e nesse momento
um bailado de letras
no papel
do pensamento

Medicina poética


Por vezes refugio-me no livro O Poeta Nu [poesia reunida], de Jorge de Sousa Braga e venho de lá sempre com a mesma íntima certeza: é a voz que mais me toca de toda a poesia portuguesa contemporânea. Este médico das letras atende-me a qualquer hora, sem marcação prévia, seguro das receitas que inventou. São terapêuticas as palavras do poeta. Quando tomadas em doses certas, na hora mais propícia ao tratamento, são um alívio para as gripes humorais, consolo para os estados de alma mais agudos, conforto para os dias em sobressalto.
Deixo aqui um poema curto para que o instante da leitura ganhe a dimensão de um sorriso arrebatador.

"Esta noite sonhei oferecer-te o anel de Saturno
E quase ia morrendo com o receio de que ele não te coubesse no dedo."

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Ruído de meninas inglesas


Confesso que deparei com estas meninas há relativamente pouco tempo. Confesso também que não as vou largar da mão tão cedo. As Electrelane têm feito o que muito bem entendem dos meus ouvidos. Elas mandam, actualmente. O seu último trabalho - No Shouts, No Calls - é muito bom. Mas, em retrospectiva, os anteriores discos são igualmente muito bons. Daí que nada posso fazer senão ouví-las, repetidamente. Elas (já me sinto íntimo, por isso as trato assim...) misturam Pram, Stereolab e Sonic Youth. São nítidas as influências Kraut destas meninas de Brighton, e isso é a cereja no topo do bolo. Se todas as girls-bands fossem assim...

sábado, 13 de outubro de 2007

Poema

Pálido amanhecer
o deste instante

(o corpo recorda
os gestos derradeiros)

na esperança táctil
de existirmos ainda
mesmo que frágeis
mas inteiros

(gélido olhar
denso e vacilante)

e uma longa viagem
já sem passageiros



* para o meu amigo Jorge

Alguma coisa acontece no meu coração



"Um tom pra cantar
um tom pra falar
um tom pra viver..."


* tom contigo, Caetano.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Dia CÊ


Hoje é dia de São Caetano. No meu calendário, pelo menos. Lá estarei. Até já.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Poema

Olha
desta varanda
vê-se o mar sereno

Se abrires os braços
vês melhor os sonhos
palpáveis
terrenos

Olha
nesta varanda
perecemos gigantes
como éramos antes
de sermos
pequenos

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Os dias coloridos


Os dias tinham mais cor naquela altura. Os amigos eram mais amigos, mais meninos, mais capazes de proezas que espantavam todo o grupo: saltar do sítio mais alto, ter a mais perfeita espada de madeira, fazer a mais feia das caretas. Brincar era uma preocupação que ninguém tinha, porque se fundia com a ideia de viver. Agora ainda vivemos, ainda brincamos, mas a cintura já não transporta as espadas de outros tempos. Tempos coloridos, mais coloridos do que nunca nas imagens a preto e branco das memórias.


nota: esta imagem pode ser vista em http://olharmacro.blogspot.com/

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Viagem sem luz


Foi como se algo tivesse disparado. Por dentro, sem estrondo algum, imperceptível. Num ápice de tempo, a cabeça entrou em rodopio, implusiva. Uma constelação de ideias apoderou-se dela e fê-la suspirar, dobrar as pernas num êxtase preguiçoso, demorado e bom. Sentiu o corpo ser invadido, uma parte do corpo, a cabeça apenas. E a viagem prosseguiu sem sentido até tornar-se um pesadelo. Sem prazer, sem estrelas, sem qualquer luz que valesse a pena ter acesa.


nota: esta imagem pode ser vista em http://olharmacro.blogspot.com/

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Poema

Volto às mãos
às palavras proferidas
pelos dedos
à pele que as envolve
no tempo
em roupagens
folgadas de sentido

Volto às mãos abertas
e sopro as palavras
ao vento
indefinido

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Poema


A mão aberta
mostra o silêncio
da vida

Os caminhos
o silêncio dos trilhos
nem sempre percorridos

A mão aberta anuncia
o tempo sem medida
como quem acende
a luz do dia

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

De volta aos romances


O novíssimo romance de António Lobo Antunes já está à venda. Ainda não o li, ainda não o tenho sequer, mas o título lembra uma passagem do Novo Testamento, em que a dado momento alguém perverso e maldoso diz a Jesus Cristo - "meu nome é legião". É exactamente esse o título do último romance do autor, agora editado. O que esperar de mais um livro do nosso genial romancista? Acima de tudo a depuração, a polifonia de discursos que se misturam, a técnica narrativa aprimorada. Julgo saber que nesta obra - mais curta que as anteriores -, encontra-se a história (expressão estranha para designar o mundo ficcional de Lobo Antunes) de jovens que habitam a periferia de uma grande cidade, narrada através de um relatório policial. Diz-se ainda que desta vez a linguagem aparece mais simplificada, mais próxima das sua Crónicas. A ser assim, temos surpresa!
Vamos lá confirmar tudo isto, então.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Poema

Cidade
retrato à chuva
a noite abre
os olhos grandes
do mundo

O silêncio corrói
vizinho a nós
febril
imenso
resoluto

A hora mostra
o vestígio inaugural
do dia
num esplendor absoluto