Subitamente, pousou o livro em cima da mesa. Olhou para mim num misto de espanto e desassossego. Por fim lá atirou:
- Você desculpe-me, amigo Artur, mas o que é isto?! Estou surpreso consigo! Você marca esta reunião, diz que é urgente, que tem um potencial
best seller nas mãos, eu desmarco um encontro importante só para o ouvir e você traz-me isto!!!
- Pois, mas não chegou ao fim da história, ainda faltam alguns capítulos e lá mais para o fim...
- Vai-me desculpar- interrompeu-me -, mas não leio mais uma linha. Isto parece uma coisa de doidos, uma espécie de roteiro sem sentido de um filme do Almodovar ou coisa parecida, feito por um qualquer arménio desmiolado. Já reparou que não há unidade nenhuma nos capítulos que li? E que você também leu, segundo me disse... Não acha que tenho razão? Cada um dos seus amigos escreve à sua maneira e depois, é claro, dá esta salganhada sem pés nem cabeça!
- Claro que li, dr. - disse com os olhos um pouco tombados, reparando na alcatifa gasta do escritório.
- Vamos lá ver: você escreve bem, tem vários romances aqui publicados, é um dos nossos melhores escritores, vende como água no verão, e por isso acedi a este encontro, na esperança de que me trouxesse algo que valesse a pena, percebe? Que desilusão!!! O facto de serem seus amigos os autores desta
coisa, deve tê-lo deixado cego, sem juízo crítico, percebe?! Isto não tem ponta por onde pegar.
- É a sua opinião e eu respeito. Parece que vim no dia errado. Lamento, lamento tê-lo feito perder o seu tempo - referi, apreciando agora algumas marcas fundas dos pés das cadeiras como pequenos buracos negros na alcatifa.
- Mas diga-me lá, ó Artur... Quem são estes seus amigos, o que fazem, têm alguma experiência de escrita? Já editaram alguma coisa? É que me parecem tão fracos, tão precários no domínio da narrativa... Olhe, se fosse a si dava-lhes um conselho: que tentassem outra via artística, sei lá... Pintar, fazer fotografia, qualquer coisa. Digo-lhe isto porque me referiu ontem ao telefone que todos eles são gente culta e interessada nestas coisas da leitura, das artes, enfim... Que façam um blog e que escrevam nele! Ainda por cima está na moda e talvez assim ganhem algum traquejo, percebe?!
- Percebo. Aliás, já percebi tudo. Talvez me tenha precipitado, peço-lhe desculpa...
- Ok, tudo bem, não se fala mais nisso. É que até o Bimbo da Costa - é assim que eu gosto de me referir ao
animal -, meteram nesta embrulhada!!! E o outro também, o tipo das casas das
meninas... Como é que se chama o gajo, que agora não me recordo? - disparou, acendendo um cigarro.
- Pronto, dr. Não o aborreço mais. Se não se importa retiro-me agora. Tenho umas voltas para dar e já vão sendo horas de me por a andar.
- Um abraço, então. E olhe, não vá assim tão cabisbaixo que me põe a mim com problemas de consciência. Que diabo, você já me conhece e sabe que comigo as coisas são ditas na hora, sem rodeios.
- Claro, dr. Claro. Não se preocupe. Um resto de bom dia, então. Com licença...
- Vá lá à sua vida e não fique assim. O texto nem é seu, caramba!!!
Virei costas e saí. No elevador, olhei para o espelho e percebi que estava cheio de olheiras. Quem me mandou a mim meter-me numa coisa destas? Os amigos servem para isto mesmo, eu sei. Mas como lhes vou dar agora a
notícia? Como? Vão ficar de rastos! Talvez aquilo dos blogs não seja má ideia. Talvez se interessem por isso, quem sabe...
* para quem quiser ler os textos deste
desafio, é
aqui que tudo começa...